Viajando pelo passado através da leitura
Recentemente comecei a ler o livro “Viagem por África, do Cairo à Cidade do Cabo”, de Paul Theroux. Ao entusiasmo da leitura, juntaram-se as recordações das minhas passagens por África, diria, pelas Áfricas que o continente africano encerra. Fecho o livro por uns instantes, encosto a cabeça e atrevo-me a fazer regressos de memória. Solta-se um sorriso.
De turismo a trabalho, passando pelas experiências de voluntariado, África foi chamando por mim. Vivi-a em intensidades diferentes, e foi nessas intensidades, de afetos e antipatias, que construí as minhas histórias com cada um desses países. Tunísia, Marrocos, Cabo Verde, Quénia, Angola e São Tome e Príncipe. Estou certa que hoje escreveria outras histórias, mas como diz Paul Theroux, “nos nossos encontros com o mundo, tudo acontece pela primeira vez”, o que não deixa de ser uma espécie de paraíso!

Ler o livro “Viagem por África” aguçou a vontade de reler os meus diários de viagem. Foi nos países onde fiz voluntariado que o meu coração ficou, marcado para sempre. Já lá vão dez anos. Os olhos passeiam-se pela fotos e pelas palavras escritas em lugares que agora deixaram de estar distantes, apesar do tempo teimar em apagar as memórias dos sentidos. Nairobi, Luanda, São Tomé… e assim adentrei África.
“As notícias que nos chegam de África são sempre más”, começa Paul Theroux o seu livro. Foi com esta história única de África que eu fui, e foi com uma lição de vida que regressei.
O imbondeiro* estava lá, firme, imponente. Fiquei parada a olhar para ele. Reza a lenda que é curandeiro. Enrugado de velho, sussurra… sussurra-nos África, aquela onde o deslumbre e a decadência se tocam, a abundância e a pobreza convivem de forma extremada. Não fosse o imbondeiro, na narrativa de Mia Couto, um “abrigo às personagens fatigadas”. Aproximei-me mais, fiquei em silêncio, e percebi que não mais regressaria a mesma. Luanda já me tinha marcado, ainda não sabia era como.
* Imbondeiro ou embondeiro é uma árvore também conhecida como Baobá Africano. Possui um tronco muito espesso na base, pode atingir até nove metros de diâmetro, que se vai estreitando em forma de cone. É considerada uma árvore sagrada
Quando fazemos voluntariado, em locais distantes como estes, distantes em tudo, testando tudo, os trajetos que fazemos não são turísticos e as ruas por onde circulamos não são para turistas. Mergulhamos nos locais sem boia ou braçadeira e a sensação que temos é que estamos a submergir… debatemo-nos ruidosamente e gastamos todas as nossas forças lutando contra a constatação de uma realidade inaceitável e incomportável. Onde guardar, em nós, o confronto com a miséria extrema. Depois de nos debatermos ruidosamente, vem o silêncio. O imbondeiro já me tinha sussurrado! E foi nesse silêncio de recetividade (que é diferente de aceitação) que a história se construiu. Umas vezes histórias, outras vezes estórias.




Visitamos e conhecemos vários projetos que estavam a ser desenvolvidos por missões religiosas nos bairros mais pobres de Luanda. Poucos quilómetros significavam horas no trânsito. Andar a pé não era opção, por questões de segurança (não fosse Angola, à data (2007), o 10.º país mais violento e inseguro do mundo). Parecia haver apenas uma estrada, todas iguais, entupidas de carros colados à traseira de outros, motas apressadas e desgovernadas, buzinas ensurdecedoras. Buracos, engarrafamentos, acidentes, atropelamentos. Pó, poeira, uma névoa.
Musseques** que beiram a estrada, mercados de rua a perder de vista, o único lugar onde os/as angolanos/as pobres conseguem comprar alguma coisa. O que esperar quando a cerveja é mais barata do que água? Ruas sem passeios, sujas de lixo que se acumula e esgotos a céu aberto, onde se vende comida e brincam crianças. Correm por todos os lados, descalças ou de chinelos, barulhentas como se querem, chapinham nas poças de água turva que a últimas chuvas encheram. Uma em cada três crianças não passa os três anos de idade, contavam-me.
** Musseques são bairro de construção precária, nos arredores de uma grande cidade, onde habitam os moradores menos favorecidos económica e socialmente
A cor das capulanas das mulheres decorava as ruas e fixava o meu olhar. Não pela cor mas pela condição. Mulheres carregando os filhos às costas, ao mesmo tempo que suportam o peso da mercadoria que vendem nas ruas. Equilibram sobre a cabeça sacos, cestas e bacias, parecendo desafiar as leis da física. Chamam-lhes zungueiras. Circulam apressadas, não há tempo a perder, são elas as lutadoras e provedoras do lar. Numa inexorável marcha de vida, percorrem a cidade o dia todo. Por isso grande parte dos projetos de desenvolvimento comunitário têm as mulheres como destinatárias, dizia-me a responsável por um desses projetos. São um exemplo de coragem e dignidade, mas também expressão da condição da mulher pobre em África, vítima das mais variadas formas de violência.
Dizem que o imbondeiro é curandeiro, sussurra-nos África… nem sempre a que queremos ouvir, mas a que precisamos de saber.
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